As partículas escondidas num frasco de remédios
Uma coisa é falar das perseguições, outra é fazer experiência do encontro com quantos vivem permanentemente nesta condição. É preciso ver, ouvir, sentir de perto para compreender do que estamos a falar.
Durante os anos Noventa, graças à ajuda de um organismo humanitário, consegui entrar num país em guerra, onde a sharia, a lei islâmica, predominava. Para garantir a incolumidade da pequena comunidade cristã ali residente, é preciso esclarecer que sou obrigado ainda hoje a omitir os nomes das localidades geográficas e das pessoas. A cidade na qual estava era a capital e a insegurança reinava soberana. Em toda a parte havia homens armados que manifestavam ódio e rancor pelo Ocidente. Sabia que arriscava a vida, mas não podia voltar atrás. Sentia que estava em jogo a minha dignidade de cronista comprometido a dar voz aos sem voz. Obviamente, em situações semelhantes a prudência é obrigatória.
Obtive o visto de entrada como jornalista porque se tivesse declarado que era um religioso católico provavelmente agora não estaria aqui a narrar esta história. Um colega espanhol disse-me que, não obstante a presença dos milicianos jihadistas, havia na cidade uma pequena comunidade de religiosas, pertencentes a uma congregação missionária. Para chegar ao seu convento era necessário superar a pé uma barreira entre as duas fações armadas opostas que disputavam o controle do território. Tratava-se de uma faixa de cerca de um quilómetro, atravessada por estradas em más condições, cheias de barrancos. Os edifícios circundantes estavam desertos e a atmosfera era surreal. O sol ardia e caminhando o suor escorria abundante.
Ao chegar à outra margem, imediatamente fui inspecionado por dois milicianos que, por sorte, tinham sido avisados da minha chegada. As religiosas viviam numa pequena casa pré-fabricada, coberta pela sombra de algumas palmeiras. No início, aquelas mulheres, três italianas, pensaram que fosse um cronista em busca de scoop e portanto mostraram-se muito desconfiadas. Aliás, quando telefonei para avisar sobre a minha visita, por prudência, não revelei a minha verdadeira identidade. Mas quando consegui explicar quem eu era, comoveram-se muito a ponto que, com lágrimas nos olhos, me pediram para celebrar a santa missa. Havia meses que não podiam participar numa missa e muito tempo tinha passado da última eucaristia. Pedi que me acompanhassem à capela. «A nossa é a menor catedral que o senhor já visitou», disse a superiora, que tinha cerca de cinquenta anos. Com um sinal fugaz convidou-me a segui-la, acompanhando-me até ao seu quarto, um cubículo, iluminado por uma janelinha aberta no teto.
Dentro do armário, escondido no meio das roupas, havia um pequeno tabernáculo. Pegou a mesinha de cabeceira, que teria sido o altar, e colocou- a ao lado da cama. Disse-me para sentar enquanto preparava o necessário para a celebração. Em seguida, as duas religiosas sentaram-se na cama juntamente com ela, com grande devoção, pedindo-me para iniciar a liturgia. Estava emocionado, tendo deveras a percepção de me encontrar na periferia da história, onde há tanta humanidade sofredora, esquecida por todos. Dos paramentos só usei a estola pois a humidade era de 99 por cento e a temperatura no limite da suportação.
Não escondo a minha dificuldade em partir o pão da Palavra de Deus com aquelas mulheres tão corajosas. Aliás, depois de pouco tempo uma delas teria sido assassinada. Li nos livros de teologia o que quer dizer martyria, mas aquele dia deveras dei-me conta do significado desta palavra. Consagrei dois quilos e meio de hóstias, mantidas num recipiente de lata. Sucessivamente, explicaram-me que as partículas teriam sido colocadas em pedaços dentro de pequenos frascos de remédios, cobertas com algodão e distribuídas aos fiéis através dos catequistas de quatro pequenas comunidades.
Precisamente o que restava, em termos numéricos, de uma Igreja, pequeno rebanho. Estou aqui a testemunhar não só a sua grande fé, mas a atitude misericordiosa diante dos seus perseguidores. «Porque — disse-me a superiora — ser cristão significa nunca se pôr contra alguém». Só então compreendi quanto é verdadeiro o ensinamento de Jesus: «Bem-aventurados sereis quando vos caluniarem, quando vos perseguirem e disserem falsamente todo o mal contra vós por causa de mim. Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus, pois assim perseguiram os profetas que vieram antes de vós» (Mt 5, 11- 12). No mesmo dia em que me encontrei com aquelas mulheres valorosas visitei os vestígios da catedral católica praticamente arrasada em sinal de desprezo não só pela religião católica mas também e sobretudo pelo ex-poder colonial, que a cultura extremista islâmica associa ao pior demónio deste mundo, o Shaytān. Segundo a religião islâmica ele tenta de todas as maneiras, só para criar desanimar as pessoas, fazê-las cair na tristeza, tendo jurado vingança até ao fim dos tempos. Pois bem, Shaytān seríamos nós que com o nosso modus vivendi, as nossas convicções, o poder e a afeição ao deus dinheiro, teríamos desafiado a única verdadeira civilização, a umma, comunidade de quantos seguem os preceitos corânicos. Obviamente, ninguém pretende ignorar os erros cometidos pelo mundo ocidental, com todas as suas incongruências, mas esquecer o bem praticado pelas religiosas mencionadas com grande abnegação, afirmando que elas são filhas das trevas, é verdadeiramente pouco generoso. Além disso, estes cruéis intérpretes da violência esquecem que o cristianismo nasceu no Médio Oriente há dois mil anos. Contudo, a recordação que conservo no coração daquelas religiosas, autênticas sentinelas da manhã, é deveras a lembrança de um dia inesquecível. Uma fé, a delas, certamente não identitária mas inclusiva, orientada ao serviço dos pobres nas periferias da história. Quem reconhece isso naquele país cujo nome ainda hoje não me é lícito pronunciar, é a sociedade civil islâmica que sempre contrastou o pensamento débil jihadista. O que vem a confirmar que, enfrentando o tema das perseguições, é injusto generalizar.
Durante a estadia naquele país de maioria islâmica, consegui visitar lugares onde antes havia algumas igrejas. Primeiramente, visitei os vestígios da catedral local. Depois encontrei-me clandestinamente com um idoso sacristão de uma paróquia, a cerca de setenta quilómetros da capital. O edifício tinha sido derrubado e o campanário destruído. Fiquei muito chocado ao constatar o modo horrível como reduziram o altar-mor. A mesa tinha sido partida em dois troncos. O idoso explicou-me que conseguiu salvar as certidões de batismo e que os conservava com zelo na sua casa. Perguntei-lhe se mantinha contato com as religiosas que viviam na capital. Respondeu que pelo menos uma vez por mês recebia os frascos dos remédios que continham as partículas. Antes de partir, ofereci-lhe um tercinho. Pôs-se a chorar como uma criança e pediu-me que o benzesse. Depois, escondeu-o num alforge no qual estava escrito Allāh Akbar, explicando, em voz baixa que para ele aquela escrita referia-se ao Deus dos cristãos, mas ninguém sabia.
GIULIO ALBANESE