A IDEOLOGIA DO GÉNERO

Talvez nem todos se tenham apercebido do alcance da influência que cada vez mais tem a “ideologia do género” (ou gender) na nossa sociedade. Já todos se habituaram a ouvir a expressão “igualdade de género”, que, de há uns tempos para cá, veio substituir a expressão “igualdade entre sexos” ou “igualdade entre homem e mulher” nos documentos oficiais e na linguagem corrente. Não é casual, ou inocente essa substituição; ela é um reflexo da tentativa de imposição dessa ideologia, sendo certo que muitas das pessoas que empregam essa nova expressão não o fazem com essa intenção, ou nem sequer têm consciência desse facto.

Mas o que é a “ideologia do género”?.

Ela parte da distinção entre sexo e género, a qual se insere na distinção mais ampla entre natureza e cultura. O sexo representa a condição natural e biológica da diferença física entre homem e mulher. O género representa a construção histórico-cultural da identidade masculina e feminina (os comportamentos, funções e papeis que a sociedade e a cultura atribui aos homens e às mulheres). Até aqui, nada de novo, ou ideológico. É uma evidência que as diferenças de papeis e funções de homens e mulheres variam no espaço e no tempo; hoje as mulheres exercem profissões que lhes foram vedadas durante séculos. A novidade reside na afirmação ideológica de que o género assim concebido deve sobrepor-se ao sexo assim concebido; a cultura deve sobrepor-se à natureza. O género não tem de corresponder ao sexo, corresponde a uma escolha subjetiva, que vai para além dos dados naturais e objetivos: posso escolher ser mulher mesmo que não o seja biologicamente. A diferença sexual entre homem e mulher em sentido natural e imutável estará na base da opressão da mulher (qualquer forma de definição de uma especificidade feminina é opressora para com a mulher; a maternidade como especificidade feminina é sempre uma discriminação injusta).
Se os dados naturais não impõem a esolham do género a nível individual,, também não imporão como normativa a união entre pessoas de sexo diferente. É indiferente a escolha de se ligar a pessoas de outro ou do mesmo sexo. Daqui surge a equiparação entre uniões heterossexuais e uniões homossexuais. A união heterossexual será apenas uma entre várias possívesis formas de família. O seu predomínio resulta apenas de condicionalismos socias e culturais. Privilegiá-la como modelo de referência (o heterocentrismo) é discriminatório e opressor.
Deixa, por isso e também, de falar-se em “paternidade” e “maternidade” como modelos de referência para a geração e educação e passa a falar-se em “parentalidade” indistinta, incluindo nesta a “homoparentalidade”. Dissocia-se em absoluto a sexualidade da procriação: o recurso à procriação artificial (incluindo a “maternidade de substituição”) é visto como uma alternativa à procriação natural, e não como forma de suprir a infertilidade patológica.

Uma influência crescente

A “ideologia do género” penetrou nos centros de poder político e legislativo, ncional e internacional (e a tal se tem referido o Papa Francisco com a expressão “colonização ideológica”). Dessa penetração são reflexo a redefinição do casamento de modo a nela incluir uniões entre pessoas do mesmo sexo, as leis que permitem a adoção por pares do mesmo sexo, as leis que permitem o recurso à procriação artificial (incluindo a chamada “maternidade de substituição”) fora do âmbito da infertilidade patológica, a admissibilidade de cirurgias de “mudança de sexo”, e as leis que permitem a mudança do sexo oficialmente reconhecido independentemente das caraterísticas fisiológicas do requerente.
Outro âmbito de penetração da “ideologia do género” é o do ensino, encarado como um meio eficaz de doutrinação e transformação da mentalidade corrente (a esta questão também se tem referido o Papa Francisco). Pretende-se que as crianças, desde a mais tenra idade, se habituem à ideia de que o género é uma escolha independente do sexo de nascença, e que não há modelos de família de referência, como não são modelos de referência a paternidade e maternidade. A educação deve servir para deconstruir os chamados estereótipos de género, nestes se incluindo qualquer forma de especificidade masculina e feminina (não apenas as que possam ser consideradas injustamente discriminatórias), incluindo no vestuário e nas brincadeiras espontâneas (com bonecas ou carrinhos).
A legislação (como a que vigora em várias comunidades autónomas espanholas) também serve para impor a “ideologia de género” até em escolas não estatais. Invocando essa legislação contra a “homofobia” e “transfobia” (contra o ódio e discriminação de pessoas homossexuais e transsexuais), já têm sido apresentadas queixas criminais (sem chegar ao julgamento e condenação) contra bispos que expõem a doutrina da Igreja contrária à “ideologia do género”. Essas leis proibem também, sob pena de severas sanções, qualquer terapia de mudança de orientação sexual não desejada ou de mudança de identidade de género não desejada.
Chegam a ser praticadas cirurgias de mudança de sexo em menores, ou o bloqueio intencional da evolução pubertária, em nome da “identidade de género”. Especialistas consideram estas práticas uma «perigosa experiência de engenharia social», «baseada na ideologia e não na ciência», salientando que a grande maioria de casos de “disforia de género” em menores são superadas . Também são muitos os casos de pessas que se arrependem de cirurgias de “mudança de sexo” (mudança que acaba por ser ilusória, dada a dimensão genética do sexo, que é imutável),
A tentativa de imposição da “ideologia de género” também se reflete nas leis que, em vários Estados norte-americanos, impõem (até em escolas não estatais) a possibilidade de frequência de instalações sanitárias, balneários e dormitórios de acordo com o género, quando este é distinto do sexo (pessoas que são homens biologicamente poderão frequentar instalações destinadas a mulheres se sentirem que este é o seu género). Há quem tema pela segurança e privacidade, sua e dos seus filhos. Há empresas e organizações que boicotam Estados que não seguem tal política Uma controvérsia (a WC War), que nos parece caricata, mas que invadiu os tribunais norte-americanos.

Uma revolução antropológica

Podemos dizer que a “ideologia do género” tem subjacente uma vsão antropológica contrária à visão judaico-cristã e à visão de outras culturas tradicionais.
Afirmou, a este propósito, o Papa emérito Bento XVI no seu (célebre) discurso à Cúria Romana de 21 de dezembro de 2012:
«Salta aos olhos a profunda falsidade desta teoria e da revolução antropológica que lhe está subjacente. O homem contesta o facto de possuir uma natureza pré-constituída pela sua corporeidade, que caracteriza o ser humano. Nega a sua própria natureza, decidindo que esta não lhe é dada como um facto pré-constituído, mas é ele próprio quem a cria. De acordo com a narração bíblica da criação, pertence à essência da criatura humana ter sido criada por Deus como homem e como mulher. Esta dualidade é essencial para o ser humano, como Deus o fez. É precisamente esta dualidade como ponto de partida que é contestada. Deixou de ser válido aquilo que se lê na narração da criação: “Ele os criou homem e mulher” (Gn 1,27). Isto deixou de ser válido, para valer que não foi Ele que os criou homem e mulher, mas teria sido a sociedade a determiná-lo até agora, ao passo que agora somos nós mesmos a decidir sobre isto. Homem e mulher como realidade da criação, como natureza da pessoa humana, já não existem. O homem contesta a sua própria natureza; agora; é só espírito e vontade. A manipulação da natureza, que hoje deploramos em relação ao meio ambiente, torna-se aqui a escolha básica do homem a respeito de si mesmo. Agora existe apenas o homem em abstrato, que em seguida escolhe para si, autonomamente, qualquer coisa como sua natureza. Homem e mulher são contestados como exigência, ditada pela criação, de haver formas de pessoa humana que se completam mutuamente. Se, porém, não há a dualidade de homem e mulher como um dado da criação, então deixa de existir também a família como realidade pré-estabelecida pela criação. Mas, em tal caso, também a prole perdeu o lugar que até agora lhe competia, e a dignidade particular que lhe é própria; Bernheim mostra como o filho, de sujeito jurídico que era com direito próprio, passe agora necessariamente a objeto, ao qual se tem direito e que, como objeto de um direito, se pode adquirir».
O Papa Francisco, nesta linha tem qualificado a “ideologia do género” como «pecado contra o Deus Criador». Afirma na exortação apostólica Amoris Laetitia (n. 56): «Não caiamos no pecado de pretender substituir-nos ao Criador. Somos criaturas, não somos omnipotentes. A criação precede-nos e deve ser recebida como um dom. Ao mesmo tempo somos chamados a guardar a nossa humanidade, e isto significa, antes de tudo, aceitá-la e respeitá-la como ela foi criada».
Podemos dizer que a “ideologia do género” contraria a verdade objetiva do anor humano. Esta verdade é determinada por conteúdos objetivos que não dependem do arbítrio, pois o corpo humano contem uma linguagem e um significado que devem ser interpretados e respeitados. O significado da sexualidade humana corresponde a um desígnio maravilhoso que a pessoa deve acolher, que não deve ser contrariado, porque foi concebido por Deus para o maior bem da própria pessoa. Desses conteúdos fazem parte a aceitação do valor da dualidade sexual, a vocação à doação e à entrega totais a outra pessoa como ser único e irrepetível e a abertura fecunda à vida.
Sobre a “ideologia do género” afirma a carta pastoral da Conferência Episcopal portuguesa de 14 de março de 2013:
«Reflete um subjetivismo relativista levado ao extremo, negando o significado da realidade objetiva. Nega a verdade como algo que não pode ser construído, mas nos é dado e por nós descoberto e recebido. Recusa a moral como uma ordem objetiva de que não podemos dispor. Rejeita o significado do corpo: a pessoa não seria uma unidade incindível, espiritual e corpórea, mas um espírito que tem um corpo a ela extrínseco, disponível e manipulável. Contradiz a natureza como dado a acolher e respeitar. Contraria uma certa forma de ecologia humana, chocante numa época em que tanto se exalta a necessidade de respeito pela harmonia pré-estabelecida subjacente ao equilíbrio ecológico ambiental. Dissocia a procriação da união entre um homem e uma mulher e, portanto, da relacionalidade pessoal, em que o filho é acolhido como um dom, tornando-a objeto de um direito de afirmação individual: o “direito” à parentalidade.
«(...) É certo que a pessoa humana não é só natureza, mas é também cultura. E também é certo que a lei natural não se confunde com a lei biológica. Mas os dados biológicos objetivos contêm um sentido e apontam para um desígnio da criação que a inteligência pode descobrir como algo que a antecede e se lhe impõe e não como algo que se pode manipular arbitrariamente. A pessoa humana é um espírito encarnado numa unidade bio-psico-social. Não é só corpo, mas é também corpo. As dimensões corporal e espiritual devem harmonizar-se, sem oposição. Do mesmo modo, também as dimensões natural e cultural. A cultura vai para além da natureza, mas não se lhe deve opor, como se dela tivesse que se libertar.»
No mesmo sentdio, afirma o Papa Franciso na Amoris Laetitia (n. 56): «sexo biológico (sex) e função socio-cultural do sexo (gender) podem-se distinguir, mas não separarar».

O valor da dualidade e conplementaridade sexual; homem e mulher chamados à comunhão

A “ideologia do género” esquese e desvaloriza o sentido e alcance da dualidade e complementaridade sexual. O sentido dessa dualidade é o do apelo à relação e à comunhão. Só nessa relação e comunhão a pessoa humana se realiza. Cada um dos sexos não exprime, por si só, a riqueza do humano na sua plenitude. Só na comunhão entre eles tal se verifica. A diferença básica que representa a dualidade sexual é, pois, uma ocasião de enriquecimento recíproco, não de oposição e conflito.
O homem e a mulher são chamados à comunhão porque só ela os completa e permite a geração de novas vidas. A família, célula básica da sociedade, assenta na colaboração das dimensões masculina e feminina. É esta que garante a geração de novas vidas, mas também o equilíbrio harmonioso e completo da educação destas, o qual supõe o contributo insubstituível de um pai e de uma mãe.
E se é assim na família como célula base da sociedade, também o é em todos os âmbitos desta. Todos eles, da política, ao trabalho e à cultura, benefeciam com o contributo de homens e mulheres no que ele tem de específico. E também é assim na vida da Igreja.
O Papa Francisco afirmou, no seu discurso à comunidade do Pontifício Instituto João Paulo II para Estudos sobre Matrimónio e Família, de 27 de outubro de 2016:
«A incerteza e a desorientação que atingem os afetos fundamentais da pessoa e da vida desestabilizam todos os vínculos, familiares e sociais, fazendo prevalecer cada vez mais o “eu” sobre o “nós”, o indivíduo sobre a sociedade. É um êxito que contrasta com o desígnio de Deus, o qual confiou o mundo e a história à aliança do homem e da mulher (Gn 1, 28-31). Esta aliança — pela sua própria natureza — implica cooperação e respeito, dedicação generosa e responsabilidade partilhada, capacidade de reconhecer a diferença como uma riqueza e uma promessa, não como um motivo de sujeição nem de prevaricação.
O reconhecimento da dignidade do homem e da mulher inclui uma justa valorização da sua relação recíproca. De que modo podemos conhecer profundamente a humanidade concreta da qual somos feitos se não a experimentarmos através desta diferença? E isto acontece quando o homem e a mulher se falam e se questionam, se amam e agem juntos, com respeito e benevolência recíprocos. É impossível negar o contributo da cultura moderna para a redescoberta da dignidade da diferença sexual. Por isso, é também muito desconcertante constatar que agora esta cultura pareça quase bloqueada por uma tendência a cancelar a diferença em vez de resolver os problemas que a mortificam. A família é o ventre insubstituível da iniciação à aliança entre Criador e criatura do homem e da mulher. Esta ligação, sustentada pela graça de Deus Criador e Salvador, está destinada a realizar-se nos vários modos da sua relação, que se refletem nos diversos vínculos comunitários e sociais. A correlação profunda entre as figuras familiares e as formas sociais desta aliança — na religião e na ética, no trabalho, na economia e na política, no cuidado da vida e no relacionamento entre as gerações — já é uma evidência global. Com efeito, quando as coisas correm bem entre homem e mulher, também o mundo e a história estão bem. Caso contrário, o mundo torna-se inóspito e a história interrompe-se.».
É verdade que a ideia de especificidade masculina e feminina tem servido, ao longo da história, para consolidar divisões de tarefas rígidas e esteriotipadas, que, sobretudo, limitaram o papel da mulher na sociedade. Contra essas limitações, é justo reagir. As especificidades masculina e feminina não são algo de rígido ( e daí também a seua beleza) e são assumidas por cada pessoa como ser único e irrepetível (nem todos os homens são iguais, nem todas as mulheres são iguais). Isso mesmo salientam a nota da C.E.P. referida e a exortação apostólica Amoris Laetittia. Nesta se afirma (n. 286):
«É verdade que não podemos separar o que é masculino e feminino da obra criada por Deus, que é anterior a todas as nossas decisões e experiências e na qual existem elementos biológicos que é impossível ignorar. Mas também é verdade que o masculino e o feminino não são qualquer coisa de rígido. Por isso é possível, por exemplo, que o modo de ser masculino do marido possa adaptar-se de maneira flexível à condição laboral da esposa; o facto de assumir tarefas domésticas ou alguns aspectos da criação dos filhos não o torna menos masculino nem significa um fracasso, uma capitulação ou uma vergonha. É preciso ajudar as crianças a aceitar como normais estes “intercâmbios” sadios que não tiram dignidade alguma à figura paterna. A rigidez torna-se um exagero do masculino ou do feminino, e não educa as crianças e os jovens para a reciprocidade encarnada nas condições reais do matrimónio. Tal rigidez, por seu lado, pode impedir o desenvolvimento das capacidades de cada um, tendo-se chegado ao ponto de considerar pouco masculino dedicar-se à arte ou à dança e pouco feminino desempenhar alguma tarefa de chefia. Graças a Deus, isto mudou; mas, nalguns lugares, certas ideias inadequadas continuam a condicionar a legítima liberdade e a mutilar o autêntico desenvolvimento da identidade concreta dos filhos e das suas potencialidades.»
Outra coisa é, porém, como faz a “ideologia do género”, negar qualquer especificidade masculina ou feminina, ou desvalorizar a paternidade e matermidade no que têm de insubstituível. Diz também o Papa Francisco na Amoris Laetitia (n. 173): «Aprecio o feminismo, quando não pretende a uniformidade nem a negação da maternidade.» E também (n. 175): «Há funções e tarefas flexíveis, que se adaptam às circunstâncias concretas de cada família, mas a presença clara e bem definida das duas figuras, masculina e feminina, cria o âmbito mais adequado para o amadurecimento da criança.»

A ideologia e as pessoas

O Papa Francisco tem salientado com insistência que a condenação dos erros da “ideologia do género” não implica faltar à caridade para com qualquer pessoa que experimente atração por pessoas do mesmo sexo (facto que não depende da sua vontade e pode, para ela representar, uma provação), tenha uma prática homossexual ou se considere de um género diferente do seu sexo (transsexual).
A respeito das pessoas com tendência homossexual, o Papa Francisco com frequência alude ao Catecismo da Igreja Católica, que afirma (n. 2538) que elas devem ser tratadas «com respeito compaixão e delicadeza», e que contra elas deve ser evitada qualquer «discriminação injusta». Na conferência de imprensa durante o voo de regresso da viagem à Geórgia e Azerbeijão, afirmou: «As pessoas devem ser acompanhadas como as acompanha Jesus. Quando chega diante de Jesus uma pessoa que tem esta condição, com toda a certeza Jesus não lhe dirá: “Vai-te embora porque és homossexual”». E o mesmo afirmou em relação a pessoas transsexuais.
Por isso, são de condenar todas as formas de ódio, violência, injúria humihação ou bullying de que qualquer destas pessoas possa ser vítima. Não podemos ignorar que é muitas vezes a exigência de evitar alguma destas situações que serve de pretexto para implementar a “ideologia do género”. Condenar esta não significa aceitar alguma dessas situações.
A resposta à difusão da “ideologia do género”
Será oportuno concluir, com uma indicação de resposta à difusão da “ideologia do género”, como faz a nota da Conferência Episcopal Portuguesa já referida:
«De qualquer modo, a mais eficaz das respostas à afirmação e difusão da “ideologia do género” é a que resulta de uma nova evangelização. Não se trata de defender um modelo tradicional Trata-se de anunciar (a alguns de forma mais genuína e atualizada, a outros pela primeira vez) a boa nova do Evangelho, que é também a boa nova da vida, do amor humano, do matrimónio e da família. Essa boa nova corresponde às exigências mais profundas e autênticas de toda a pessoa humana. A esse anúncio, antes da mais com o testemunho da vida, são chamadas, em especial, as famílias cristãs.»
Pedro Vaz Patto

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