Elogio do silêncio

escutarAo que parece, durante muitos anos John Cage estudou a possibilidade de elaborar uma obra totalmente desprovida de som, mas duas coisas lho impediram: a dúvida de que tal empreendimento pudesse destinar-se à falência imediata, dado que tudo é som, e a certeza de que uma composição do género resultasse incompreensível no âmbito do espaço mental da cultura do ocidente. Contudo, encorajado pelas experiências que já se iam realizando nas artes visuais, compôs a sua peça intitulada 4’33». A proposta de John Cage era absolutamente anómala: a orquestra devia subir ao palco, saudar o público, sentar-se cada um com o seu instrumento e ficar ali, em silêncio, quatro minutos e trinta e três segundos. Depois, deviam levantar-se, agradecer à plateia e ir embora.

O público protestou energicamente com uma chuva de assobios. Mas durante o resto da sua vida, John Cage continuou a falar desta sua peça com profunda consideração: «a minha peça mais importante é a silenciosa; não há dia que eu não me sirva dela para tudo o que faço. Estudo-a todas as vezes que quero compor uma peça nova».

Quando reflicto sobre a contribuição que a experiência religiosa poderá dar à humanidade num futuro próximo, francamente penso que, mais do que a palavra, será a partilha daquele património imenso que é o silêncio. Já a narração bíblica de Babel põe a nu os limites do impulso totalitário da palavra. Com a palavra experimentamos a diferenciação, experiência certamente fundadora, mas também ela parcial. Precisamos de outra ciência à qual raramente recorremos: o silêncio. Isaac de Nínive, em finais do século VII, sentenciava: «A palavra é o órgão do mundo actual: o silêncio é o mistério do mundo que está para chegar». Penso que é absolutamente urgente revisitar, segundo uma diversa avaliação, os territórios dos nossos silêncios e fazer deles lugares de intercâmbios, de diálogos, de encontros.

O silêncio é um instrumento de construção de paz. As nossas sociedades investem muito na construção de competências no campo da palavra e muito pouco nas competências que agem no silêncio. Somos analfabetas do silêncio e este é um dos motivos pelos quais não sabemos viver em paz.

Na diversidade das tradições religiosas e espirituais da humanidade, o silêncio é um traço de união mais frequente de quanto se imagina e mais fecundo de quanto se considera. Na realidade trata-se de uma gramática comum. Na tradição muçulmana, por exemplo, o centésimo Nome de Deus é inominável que não se pode invocar a não ser em silêncio.

Os místicos de todas as geografias nunca se cansaram de explorar este espaço. Veja-se o persa Rûmi (1207- 1247) que aconselha ao seu discípulo: «Àquele que conhece Deus faltam-lhe as palavras». Noutra geografia temos a anotação espiritual de Lao-Tsé, «o som mais forte é o silencioso», ou a de Bashô, «silêncio / uma rã mergulha / dentro de si», ou a de Eléazar Rokéah de Worms, cabalista judeu que afirmava: «Deus é silêncio». Também a Bíblia coteja minuciosamente o silêncio de Deus. E este nem sempre é um silêncio fácil, mesmo se somos chamados a acreditar na verdade do dístico que nos oferece o Livro das Lamentações: «É bom esperar em silêncio a salvação de Deus».

O silêncio possui tudo para se tornar um saber partilhado em relação ao essencial, ao que nos une, ao que pode, para cada um de nós como indivíduo e para todos como comunidade, lançar as bases para os modos possíveis de nos reinventarmos. Mas para isto precisamos de uma iniciação no silêncio, que equivale a dizer uma iniciação na arte de o u v i r.

Na sociedade da comunicação há um deficit de escuta. Numa cultura da enchente das palavras como a nossa, uma escuta verdadeira pode configurar-se unicamente como uma nova significação do silêncio, um recuamento crítico face ao delírio de palavras e mensagens. Por isso, a arte da escuta é uma prática de resistência. Estabelece uma descontinuidade em relação ao real aparente, à sucessão ociosa do discurso. A escuta constitui uma ruptura, uma prática de atenção.

JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA, in L’OSSERVATORE ROMANO quinta-feira 9 de Abril de 2015, número 15